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1 – Introdução
Uma de minhas escritoras
favoritas é a inglesa Dame Agatha
Christie. Muitas horas de minha vida foram gastas lendo seus oitenta romances,
e através dela, conheci e passei a admirar o gênero literário conhecido como
“literatura policial”. Diferentemente de outros gêneros, há um nível de imersão
tão grande em alguns desses livros, que eles ficam na fronteira entre o livro e
o jogo. Compreender o que há de tão especial nos romances policiais sempre foi
uma de minhas paixões literárias, e acredito que os estudos realizados por
vários pesquisadores a respeito de como nossa mente categoriza seja uma forma
de alcançar essa compreensão.
Antes de mais nada, é preciso
apresentar o gênero policial àqueles que têm pouco ou nenhum contato com ele. A
literatura policial é um gênero difícil de definir. Suas histórias, de maneira
geral, apresentam um crime e um investigador que irá procurar solucionar os problemas
gerados por esse crime. Em alguns livros, o “problema” é resolver o mistério da
identidade do criminoso (ou de como ele pôde cometer tal crime). Em outros, não
há mistério, mas uma trama criminosa que deve ser impedida pelo investigador em
um clima de constante suspense.
Vou me ater, daqui por diante,
ao primeiro tipo acima: o romance policial em que há um mistério a ser
desvendado. Esse subgênero pode ser chamado de “romance policial inglês
clássico” ou “romance de enigma” (ao qual pertencem Agatha Christie e Conan
Doyle), e teve seu ápice na Inglaterra, durante o período entre-guerras.
Tzvetan Todorov (2006), em seu
livro As Estruturas Narrativas, tem
um capítulo dedicado à “Tipologia do Romance Policial”. Nele, há essa
constatação, ligeiramente mal-humorada, sobre o gênero:
“A obra-prima habitual não entra em nenhum gênero senão o seu próprio;
mas a obra-prima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor se
inscreve no seu gênero. O romance policial tem suas normas; fazer ‘melhor’ do que
elas pedem é ao mesmo tempo fazer ‘pior’: quem quer ‘embelezar’ o romance
policial faz ‘literatura’, não romance policial.”
Com todo o respeito que tenho a
Todorov (e tenho muito respeito pelos livros dele que já li), sou obrigada a
discordar firmemente dessa afirmativa, especialmente no tocante ao subgênero
“romance de enigma”. Após anos lendo livros policiais, percebi que o bom
romance policial, é justamente a história subversiva; aquela que, estando
consciente de suas normas, de alguma forma, quebra-as deliberadamente para
surpreender o leitor. Sem algum tipo de subversão, não há surpresa.
Não que eu acredite que o
respeitável teórico acima tenha toda a culpa por fazer essa afirmativa: ele
baseou muito de sua tipologia no que disseram os “teóricos do gênero”, especialmente
os membros do Detection Club da
Inglaterra, um clube de autores policiais famosos, dedicados a estudar e
“proteger” o gênero policial. Esses teóricos são os principais responsáveis por
essa visão de que o único romance policial que possa ser considerado “bom” é o
que segue à risca todas as “regras” silenciosas desse gênero. Um dos presidentes
do Detection Club, Van Dine, chegou
mesmo a escrever e publicar uma série de regras que, segundo eles, jamais
deveriam ser quebradas em um bom policial. Isso não impediu que todos os bons
romances do período entre-guerras tenham subvertido ao menos uma delas.
A razão pela qual trago essa
discussão de gênero literário para um trabalho sobre categorização por modelos
cognitivos ideais, ou ICMs, (isso é, os pressupostos por trás de como fazemos
uma categorização) é que acredito que são poucos os gêneros literários onde
ICMs podem ser vistos em ação com toda a clareza. Mais que isso: enquanto bons
escritores de outros gêneros podem fazer boa ficção com um conhecimento apenas
intuitivo dos pressupostos de seu gênero, um escritor de romance policial
necessariamente tem que conhecer algo dos modelos mentais formados por seus
leitores, caso queira manter o mistério da história até o fim.
Em outras palavras, creio que o
romance policial é um jogo cognitivo entre o autor e o leitor, em que um tenta
deduzir e se adiantar às estruturas narrativas que crê que o outro está
utilizando. E, dentre todos os autores policiais que conheci, poucos jogaram
esse jogo tão bem quanto Agatha Christie. Essa é a razão pela qual escolhi um
de seus contos, “O Móvel do Crime” (Motive
versus Opportunity), como estudo de caso da aplicação de ICMs.
Antes de passarmos para essa
parte, permitam-me uma breve explicação a respeito do que são ICMs.