domingo, 9 de maio de 2010

Estilizando o vampiro (parte II), ou Introdução à Antropofagia

Quando terminei o post falando sobre estilização de figuras mitológicas, usando o vampiro de exemplo, prometi que iria dizer como fiz minha estilização. Porém, aconteceram duas coisas: 1- Comecei a divagar o bastante para criar outro post e 2 - Encomendei o livro O Vampiro Antes de Drácula. Sendo assim, os fatos pertinentes ao Conservatório, em si, terão que ficar para a próxima. Primeiro, precisarei falar um pouco sobre antropofagia. Estômagos sensíveis, fechem essa tela.

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"Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente."

Assim começa o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. A maioria das pessoas talvez tenha uma vaga lembrança do chamado Movimento Antropofágico, das aulas de Literatura da escola. Foi um movimento criado por artistas modernistas (Arte Moderna, você conhece, né? NÉ?). Talvez uma lâmpadazinha se acenda em sua cabeça ao ver uma das pinturas mais icônicas desse movimento:


Esse quadro da Tarsila do Amaral se chama Abaporu, ou seja, "homem que come homem". Antropófago, em uma palavra. Mas o que isso tem a ver com a estilização de que eu falei no post anterior? Primeiro, entendamos o que era o Movimento Antropofágico. Em resumo resumidíssimo, ele pregava que nós devíamos "deglutir" a cultura de todos os povos que nos cercavam - europeus, africanos, índios, etc, etc - e usar seus elementos para construir nossa própria. A metáfora é fácil de ser entendida: quando comemos uma planta, um bicho (ou uma pessoa, claro), nós mastigamos, digerimos e absorvemos seus nutrientes. Eles são incorporados a nós e passam a ser parte de nós. Não somos couve porque comemos couve. A couve é desmontada, transformada e se torna parte do nosso corpo. O mesmo se daria com o contato com a cultura de outros povos: deveríamos mastigá-la, digeri-la, absorvê-la e usá-la para fortalecer nossa própria cultura, ao invés de simplesmente imitar os gringos.

Pois bem. Falei isso tudo porque é a metáfora que vou usar para falar sobre um tema que frequentemente causa polêmica entre os escritores: pesquisa para montar os personagens.

No post anterior, comentei sobre a importância de conhecermos o que vai na cabeça do leitor sobre uma criatura qualquer ao escrever sobre ela. A ferramenta para isso é a boa e velha pesquisa. Mas como fazer essa pesquisa? Quão fundo ir? Vamos atacar o assunto jackestripadoramente. Para efeitos didáticos, vamos dividir a pesquisa em duas: pesquisa acadêmica e pesquisa pop. (Isso não existe em lugar nenhum, eu é que obsessivamente categorizo qualquer coisa que ocupe meu pensamento por mais de cinco minutos. :P)
 
Pesquisa acadêmica seria a pesquisa que é feita sobre o tema nos meios acadêmicos. Se seu tema é vampiros, é saber de onde veio a lenda, como ela se desenvolveu, quais podem ter sido suas bases reais, o que os estudiosos dizem sobre ele e sobre seu simbolismo, etc, etc. Existe um time de escritores (geralmente os mais novos) que torce o nariz para esse tipo de pesquisa, achando um gasto de tempo inútil.
 
Pesquisa pop, por outro lado, seria a pesquisa sobre como o tema é tratado pela mídia. É saber o que já foi feito com aquele tema e o que caiu em gosto popular. O que os fãs acham do tema, o que é que está no topo das paradas de sucesso... Tem escritores (geralmente os mais velhos) que acha que ela se restringe a livros e é uma parte quase dispensável, se você fez bem sua pesquisa acadêmica.

Gente, nem tanto o céu, nem tanto a Terra. A imagem das duas asas encaixa muito bem nessa situação. Você não voa se uma dessas duas asas da pesquisa estiver atrofiada.

A pesquisa acadêmica é essencial para você saber a respeito do que está falando. Lembram-se de Jesus Cristo? "A verdade vos libertará." Conhecimento liberta. Quanto mais facetas você conhece do tema que está lidando (sejam vampiros, seja Idade Média), mais inspirado e seguro você se sente ao lidar com ele. Muitos problemas de trama que nos fazem ficar dias pensando podem ser resolvidos ao se descobrir o histórico de um ser mitológico. Num exemplo prático, digamos que você queira escrever uma história com elfos e orcs, porque acabou de leu Tolkien e quer criar uma história daquele jeito. Ao buscar conhecer "o elfo antes de Tolkien", ou a simbologia que os elfos e orcs têm no trabalho de Tolkien, de repente, pode ser que você descubra elementos novos para sua história, para criar algo original. Ler artigos, livros acadêmicos e manuais de mitologia pode ser chato no início, mas te juro: assim que você fizer a primeira descoberta bacana, que vai resolver aquele furo na trama que tava te assombrando, você toma gosto pela coisa.

Já a pesquisa pop pode parecer um pouco "tola", ainda mais se você não quer ser um autor de best-sellers (há quem não queira, OK?). Mas ela é fundamental! Saber o que as massas pensam, no mínimo, nos dá uma pista do que há no tema que você escolheu e que mexe com as emoções das pessoas. Além disso, a prática de se fazer pequenas homenagens a obras famosas do tema que você está escrevendo cria uma espécie de laço de afeto entre o leitor e seu livro. Não homenagens demais, que dêem a sensação que o leitor está jogando "onde está Wally?", mas algumas. E o mais importante: quando eu disse "obras", não falei só de livros. Falei de filmes, games, animações, mangás e HQs, e tudo o mais.

Já ouvi muitas pessoas dizerem "eu não gosto de ler livros com tema parecido com o meu porque, depois, eu copio o estilo sem querer". Gente, isso é natural e não é desculpa. Voltando à metáfora da antropofagia, quando você come alguma coisa e entra numa montanha russa logo depois, o resultado é óbvio: você vai vomitar um caldo semidigerido, onde pedaços do alimento original ainda são reconhecíveis. É preciso dar um tempo para o organismo digerir o alimento e absorver. Eu sou uma que não leio enquanto escrevo e vice-versa. Não consigo. Deixe essa pressa pra escrever pra trás, que não leva a nada. Seja um antropófago cultural: pegue a referência e dê tempo para que ela se torne parte de você, ao invés de ficar vomitando pedaços de cultura estrangeira. Só assim você cria identidade.

Um argumento oposto e igualmente preguiçoso é o de que "eu não fico lendo coisas com o mesmo tema que o meu pra ser original e não copiar ninguém". Gente, não se faz tijolos sem barro. E acreditem em mim, o leitor não liga A MÌNIMA se você leu ou não fulano. Se você fizer algo igual ao que ele fez, vão cair em cima do mesmo jeito. Afinal, COMO você não sabia que fulano fez algo igual? Nessas horas, a gente tem que ser humilde e pensar que nós não somos a pessoa mais criativa do universo. Uma simples referência àquele que teve uma ideia igualzinha à nossa já costuma bastar para transformar o que seria um "defeito" em um elo de ligação com o leitor. O que era um erro devido à desinformação se torna um atrativo.

Antes de encerrar o post, vou apresentar a quem não conhece o mapa da mina para quem quer ser um escritor sério e bem informado. Como nem sempre é possível ler/ver/jogar tudo o que sai sobre um tema, a gente geralmente tem que recorrer a resenhas, resumos e bate-papo com amigos. Mas o melhor lugar para você saber se é mesmo um escritor original ou não é http://tvtropes.org/. Esse site é uma wiki que cataloga vários "truques" comuns no desenvolvimento de uma trama (os tais tropos - eita palavra feia!), e dão uma lista impressionante das obras de todos os tipos onde eles aparecem e onde são subvertidos. Alguns tropos têm até exemplos na vida real. Usem o site sem moderação, mas cuidado. E não se deprima se perceber que tem mais de 300 obras que usaram o mesmo truque de narrativa que você. Só espero que se convença de que originalidade absoluta e total faz companhia a superfícies sem atrito e gases ideais.

Agora que estão armados até os dentes, boa sorte com a escrita e a estilização de personagens. o/

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Retorno aos vampiros na parte 3. Beijos!